Jovens que bombardeiam a piscina do hotel com laranjas, hóspedes que simulam estar mortos ou turistas que perguntam se Almada é Marrocos – tudo pode acontecer. Governantas, camareiras e concierges contam como nos seus hotéis já houve casamentos encenados, roubos de arte e pedidos surreais, alguns de figuras públicas. Mas a típica hospitalidade portuguesa tem sempre resposta.
Era ainda de manhã cedo quando a hóspede brasileira entrou num dos hotéis mais luxuosos de Lisboa. Com ela, quatro grandes malas e um pedido pouco comum. Queria que alguém as despejasse e arrumasse o seu conteúdo no armário do quarto. “Na hotelaria de antigamente era normal fazer-se isto, só que cada vez mais os clientes não gostam que lhes mexam na roupa. Mas se algum pedir, fazemos”, recorda a governanta que assegurou o serviço. “Era tanta roupa e o calçado, que havia sapatos sem par”, conta.
Mas não desistiu da tarefa. Nem quando o companheiro da senhora entrou no quarto, se enfiou na cama e se despiu. “E eu ali a pôr a roupa no roupeiro. Perguntei se queriam que voltasse mais tarde, mas ele disse para continuar. Só pensava: ‘Espero que não se esqueçam que estou aqui’”, descreve, temendo outros desenvolvimentos. Só saiu depois de pendurar tudo. Apesar de algum constrangimento, nos dias seguintes, sempre que esta hóspede queria, ia ordenar-lhe as fatiotas.
“Tentamos sempre dar o melhor”, resume esta profissional, que prefere não ser identificada. Para garantir que voltam, mais do que vender camas, a ambição máxima de um hotel é fazer com que os seus clientes se sintam em casa. Por isso, não há mãos a medir para satisfazer os seus desejos. Mesmo os mais estranhos.
“Um cliente pediu-nos uma escova de dentes de certa marca. Fomos comprar e, quando lha demos, disse que não era aquela cor que queria. Fomos comprar outra”, exemplifica Andreia Costa, governanta-executiva do Pestana Palace, hotel de luxo em Lisboa. Há pouco tempo, também teve um hóspede a suplicar-lhe que lhe cosesse umas calças em dez minutos. E um cliente russo queria que lhe passassem a ferro a camisa que ia usar no seu casamento, mas só se lembrou disso 15 minutos antes de a cerimónia começar.
“Já tive hóspedes a querer ir de avião de Lisboa a Paris ou Madrid só para fazer compras e voltar”, prossegue o concierge desta unidade de cinco estrelas. Organizar passeios turísticos, marcar restaurantes ou comprar bilhetes para eventos são solicitações que os hóspedes fazem com frequência, enumera Pedro Cotrim, cuja função é “responder a todos os pedidos do cliente, possíveis ou impossíveis”, desde que legais, ressalva. Até porque “é raro”, mas já lhe perguntaram se arranjaria drogas ou prostitutas.
Habituado a receber figuras públicas (ver páginas seguintes), parte do trabalho deste concierge – considerado um dos melhores do mundo, através da distinção Clef D’Or, e que faz questão de tratar os hóspedes pelo nome – passa por reunir informação sobre cada cliente, antes mesmo de este pôr o pé no hotel. Só assim é possível assegurar que quando o Sr. X chega à mesa já tem à sua espera o sumo de laranja natural que gosta de beber ao pequeno-almoço e os ovos preparados da sua maneira favorita.
“Muitos hóspedes telefonam-nos a perguntar se podemos mandar os nossos pastéis de nata em caixinhas para os seus países”, acrescenta Ana Caetano, relações públicas do hotel Marriott
Viver, casar, morrer num hotel
Mimados ao máximo, os hóspedes podem até ficar a viver. Hoje, a maior unidade da capital, com 564 quartos, recebe maioritariamente homens de negócios. Mas nos anos 80, quando ainda era Penta, havia “mais de 20 hóspedes que residiam no hotel”, sobretudo idosos. “Vendiam os seus bens e vinham viver aqui por opção de vida. Até era uma forma de não se sentirem sós. E era muito mais interessante visitar uma avó que vivesse num hotel, com mais de 500 quartos e piscina”. Aos residentes era permitido decorar o quarto a seu gosto, com objectos pessoais. E acomodar os seus animais de estimação.
Ao contrário de grande parte dos alojamentos, o Marriott aceita bichos. Por isso é habitual receber cães e gatos. Mas também já ali se instalaram iguanas ou araras. Durante anos o próprio hotel teve uma mascote: um gato preto chamado Penta. “Era o único hotel em Lisboa que tinha um gato”, garante Ana Caetano, que trabalha nesta unidade há 22 anos.
Já o Pestana Palace está vedado a este tipo de ocupantes. Mas há excepções. A um casal que fica muitas vezes no hotel é autorizada a permanência do cão: é o animal que avisa a esposa das horas de tomar a medicação.
Mais ou menos ternas, é deste tipo de realidades que se faz o dia-a-dia de um hotel. Mas também há histórias de casamentos, discussões conjugais, funerais, roubos, episódios insólitos. Muitos.
Neste capítulo, Ana Caetano lembra-se bem de “um grupo de jovens cuja diversão foi passar a noite a atirar laranjas para a piscina”. Ou quando uns turistas espanhóis, retidos em Lisboa devido a uma greve geral, “escreveram a preto ‘Estamos convosco’ em vários lençóis, que depois estenderam nas respectivas varandas dos quartos”. O acto de solidariedade foi bonito, mas os clientes tiveram de pagar o estrago na roupa de cama.
Noutra ocasião, uma das camareiras não ganhou para o susto quando, depois de muitos telefonemas sem resposta para avisar duas hóspedes que estava na hora de fazerem o check out, decidiu ir ver o que se passava. “Eram duas camas individuais e estavam duas pessoas deitadas, sem se mexer. Chamavam-nas e nada. Até que a empregada se aproxima. Percebe que as duas raparigas que tinham ocupado o quarto, e que tinham vindo para participar num congresso de cabeleireiros, tinham feito uma brincadeira. Tinham deixado duas cabeças falsas com perucas de cabelo natural a simular pessoas para assustar”.
“Já tratei de um funeral e já casei duas pessoas aqui”, narra Pedro Cotrim, do Pestana. Ao altar levou um casal de noruegueses na casa dos 50 anos. Gostaram tanto de Lisboa que quiseram dar o nó numa igreja da cidade. “Ainda propus fazer um casamento simbólico, mas eles quiseram casar ‘à séria’. Tratámos de tudo junto da embaixada, eles mandaram vir os padrinhos e casaram na Igreja do Loreto”.
Na Quinta da Marinha, aconteceu o inverso. Encenou-se um casamento. Um casal queria que o staff do Onyria Marinha preparasse todo o evento. “Avisámos que teriam de ser os próprios a tratar da papelada em Londres, onde viviam, pois este acto oficial obriga a documentos e permissões legais. Mas disseram que só queriam uma pessoa que celebrasse o casamento de forma a parecer real”. Luís Ferreira, um dos directores, tremeu: não poderia ignorar a lei e cooperar numa mentira. “O bom da história é que os clientes tinham-se esquecido de dizer que já estavam casados pelo civil em Inglaterra e tinham os documentos oficiais. Mas tinham casado sozinhos e agora queriam reunir famílias e amigos para celebrar. Contratámos um actor e escolhemos o texto de casamento na internet. O actor casou-os simbolicamente, dando a bênção à união. Até houve lágrimas”.
Casar em hotéis é uma tendência crescente. Por isso, nestes acontecimentos há sempre episódios para mais tarde recordar. Se existir piscina, é frequente que alguns convidados acabem a festejar na água. Às vezes, sem roupa. “Há hóspedes que acham graça, outros não, até pelo barulho”, admite o concierge do Palace.
Menos graça tem também a organização de funerais de turistas estrangeiros. Não só por causa de toda a parte burocrática, que muitas vezes cabe aos funcionários do hotel tratar junto das embaixadas. Mas também por terem de apoiar os acompanhantes. Uma vez, no Marriott, foi preciso confortar uma hóspede que vinha a Lisboa festejar o aniversário de casamento, mas o marido falecera no voo.
Roubos com final feliz
Em matéria de factos desagradáveis estão também os roubos. Tudo o que tenha o logótipo do hotel, como colheres ou cinzeiros, e que possa servir de recordação, tem potencial para surripianço, embora isso até seja visto com normalidade pelos hoteleiros. Deixam passar. Toalhas, roupões ou as peças de decoração da casa de banho também são frequentemente ‘desviados’. E aí há hotéis que gentilmente pedem ao hóspede que os pague ou devolva.
Quando se trata de arte, o cenário é diferente. No Palace, que ocupa um palácio do século XIX com decoração de inspiração francesa, já desapareceram várias peças. “Numa das salas cortaram a tela de um quadro grande e ficou só a moldura pendurada, mas não era muito valioso”, lembra a governanta-executiva. “Houve também um cliente que levou os quadros que indicam a casa de banho dos homens e as das senhoras, ao pé do restaurante. Mas depois conseguimos identificá-lo, ele disse que tinha bebido um pouco demais e que os tinha levado por lhes achar graça. Devolveu-os, mas completamente partidos”. Depois de um casamento bem regado, um dos convidados levou quadros e parte de um computador. “Demos pela falta, mas acabou por ser o próprio a telefonar para dizer que tinha os artigos e desculpar-se”, expõe por sua vez Pedro Cotrim.
Muitas vezes, quando percebem que não têm razão ou que se excederam, os hóspedes admitem e pedem desculpa aos funcionários. Em situações mais extremas, chama-se a?segurança. Por exemplo, há quem se insinue junto das camareiras, com propostas sexuais. “Há clientes bastante desinibidos que acham que tudo é normal”, nota Andreia, explicando que há treino para lidar com estas investidas. Antes de entrarem num quarto, batem várias vezes à porta. Se um cliente aparece apenas de toalha, dizem que voltarão em altura mais oportuna. Arruma-se o quarto de porta aberta.
Para onde foi a água da piscina?
N
o oposto, podem ser os clientes a contribuir para o bom funcionamento de um hotel. Na Pousada do Crato, numa tarde de Junho com quase 40ºC, conta um dos responsáveis, foi um casal de alemães que avisou que a piscina estava a ficar vazia. “Quando fui explicar-lhes que tinha rebentado um tubo, disseram que a água desaparecera em dez minutos e que nunca tinham visto nada assim. Mas foram bastante compreensivos. O marido, um típico cidadão germânico, até brincou: ‘Não fomos nós que desaparecemos com a água. Preferimos cerveja’”.
No Pestana D. João II, no Algarve, um irlandês ligou do seu quarto para a recepção, pedindo para chamar o director. Tinha-lhe sido atribuído um quarto com vista para o jardim. Mas algo não batia certo. “Perguntou-me se eu tinha a certeza que o quarto dele tinha vista jardim”, conta Miguel Metello, responsável pela unidade na altura. “Disse-lhe que sim e perguntei se estava tudo bem. Aconselhou-me vivamente a ir ver o jardim, pois estavam muitos carros estacionados e andava lá um táxi de trás para a frente”. Afinal, a vista era para o parque de estacionamento, mas Miguel Metello não se ‘desmanchou’. “Instalei-o num quarto melhor, e ficámos amigos. Sempre que voltava ao hotel, perguntava-me se já tinha proibido a circulação de carros no meu jardim”.
No Marriott, recentemente, os funcionários tiveram de ir acudir a um hóspede que se queixava que o aparelho onde pretendia fazer chá não funcionava bem. Perceberam que o senhor achara que o cofre era um microondas.
“Este tipo de confusões tem a ver com experiências de vida e culturas diferentes. E nem todas as pessoas que ficam nos hotéis têm de ser muito viajadas. Podem estar a fazer a sua primeira viagem”, frisa Ana Caetano, sublinhando que na hotelaria se deve ter em conta e aceitar sem estranhar as diferenças culturais, religiosas, etárias, sociais. “Somos afáveis por natureza, mas podermos cometer erros por ignorância”, continua, referindo-se à arte de bem receber em Portugal.
Em vários inquéritos a estrangeiros, a hospitalidade dos portugueses surge como segundo melhor argumento do país, apenas atrás das praias. “Conseguimos cativar as pessoas e somos bons a prestar o serviço. Se há um pedido mais estranho, tentamos sempre dar a volta por algum lado para conseguir e isso faz a diferença”, realça Andreia Costa.
A mesma opinião tem Helena Cipriano, guia turística. “Temos facilidade em criar empatia e daí vem a paciência. Estou nesta actividade há sete anos e nunca vi um profissional perder a paciência com um cliente”. E adverte que além das diferenças culturais, pode haver também outras nuances, como as linguísticas. Para os brasileiros, por exemplo, a palavra ‘rapariga’ tem conotação negativa. Preferem chamar ‘moça’ ou ‘moço’, o que aos guias pode não soar tão bem.
Também não faltam turistas a rebaptizar os monumentos nacionais. “Quase todos os dias há pessoas a perguntar pelo Mosteiro de São Jorge, pelo Castelo dos Jerónimos ou pelo Mosquiteiro [Mosteiro] dos Jerónimos. Torre de Babel [em vez de Torre de Belém] também é muito comum. E a Biblioteca Joanina em Coimbra é a Biblioteca Joaquina”.
Por vezes também surgem questões de resposta difícil. Helena já teve quem lhe perguntasse se Almada era Marrocos. E recorda a primeira vez que uma brasileira comentou que a Mercedes devia ser uma marca importante em Portugal, porque além de muitos táxis e autocarros desta marca, também havia muita publicidade espalhada pelo país. Até em cima de vários montes e “girando, girando”. A guia não percebeu à primeira, mas depois fez-se luz. O que a turista via eram torres eólicas a funcionar, mas assumia que eram anúncios à marca de carros.
No Mosteiro da Batalha, um dos visitantes insistia em saber o nome do soldado desconhecido, recordam Dafne Lemos e Fátima Santos, ex-guias.
As idas a Fátima também têm episódios pouco católicos. Há quem queira fazer piqueniques no santuário. “Levei algum tempo a explicar a um grupo de cristãos ortodoxos que não era possível fazê-lo, por ser um local sagrado, como se fosse uma igreja”, descreve Helena Cipriano. “Na sua lógica, sendo um espaço aberto, com uma árvore, pode-se comer e fazer piqueniques”. A guia também teve de esclarecer uma brasileira que confundiu Fátima com o Cristo Rei (em Almada), e por isso queria ir de metro.
“Há 30 anos, quando o percurso Lisboa/Fátima demorava duas horas e meia, ao ver um vídeo com a história do local, em que algumas partes entre os Pastorinhos e a Nossa Senhora eram em diálogo, uma turista italiana chorava comovidíssima. Pensou que se tratava de uma gravação verdadeira das aparições de 1917”, relatam Dafne e Fátima.
De outro mundo foi também o caso de uma cliente francesa que num longínquo 12 de Outubro, durante a procissão das velas, se perdeu do grupo. Após várias horas foi encontrada e levada ao hotel. “Mas recusava ir para o quarto com o marido pois afirmava, ofendidíssima, que nunca se tinha casado e não ia dormir com um desconhecido”, descrevem as duas agentes de viagens. A turista, de 80 anos, tinha casado há uma semana, e a peregrinação era a viagem de núpcias.
Sem comentários:
Enviar um comentário